Por Jaqueline Costal
Tempo de leitura: 6 minutos
Você já ouviu falar em trabalho
invisível, também conhecido como trabalho reprodutivo? Esse é o trabalho que ocorre
nos bastidores, longe dos olhos da sociedade.
Imagine todas as tarefas que
mantêm uma casa funcionando: limpar, cozinhar, organizar, cuidar das crianças,
dos idosos, dos doentes. Esse é o tipo de trabalho que normalmente é invisível
aos olhos da sociedade e da economia. Ele é, em geral, não remunerado,
raramente é reconhecido e, tradicionalmente, é esperado que as mulheres o
realizem.
De acordo com a OXFAM Brasil
[1], no país, 90% do trabalho de cuidado é feito informalmente pelas famílias,
e quase 85% dele é realizado por mulheres. E o mais impressionante? No mundo, essas
mulheres e meninas dedicam diariamente 12,5 bilhões de horas a essas tarefas, sem receber
praticamente nada em troca.
E essa desigualdade não para
por aí. A PNAD* ‘Outras Formas de Trabalho’ de 2022 revelou que quanto menor a
escolaridade e a renda familiar, maior a disparidade na divisão das tarefas
domésticas entre homens e mulheres. Ou seja, o trabalho invisível atinge sobretudo
mulheres e meninas em situação de vulnerabilidade, com um impacto ainda mais
pronunciado sobre mulheres negras. Esse aspecto contribui diretamente para o
conhecido fenômeno da feminização da pobreza.
Mas por que isso acontece? A célebre
filósofa Silvia Federici nos leva em uma jornada histórica fascinante em seus
livros "Calibã e a Bruxa: Mulheres, Corpo e Acumulação Primitiva [3]"
e "Mulheres e Caça às Bruxas: da Idade Média aos dias atuais [4]", revelando
como essa lógica foi [re]formulada nos séculos XVI e XVII. Federici explora
como, ao longo dos séculos, “[a] perda de poder social das mulheres
expressou-se também por meio de uma nova diferenciação sexual do espaço”. Nesse
processo, as mulheres foram relegadas ao espaço doméstico, privado e
reprodutivo, e desde muito cedo, ensinadas a executar, de forma exclusiva, esse
tipo de trabalho. Foram, inclusive, expulsas e proibidas de atuar em muitos trabalhos
assalariados e sua presença em público passou a ser malvista.
Essa divisão foi fruto de uma
desvalorização da figura feminina como um todo, e possui razões históricas profundas,
perpetuando a ideia de que cuidar do lar e da família é uma obrigação feminina.
Ainda que essa atividade seja essencial para a reprodução da força de trabalho,
- pois é a base sobre a qual toda a sociedade se sustenta, permitindo que todos
os outros tipos de trabalho aconteçam -, ela praticamente não é reconhecida e,
quando há remuneração, os salários costumam ser muito baixos.
Por outro lado, aos homens
foi reservado o domínio do ambiente público, produtivo e de poder.
Embora atualmente haja uma
crescente conscientização sobre essa questão, em muitos lares, a maioria dos
homens se limita a executar as tarefas designadas, muitas vezes precisando de
repetidas instruções e persuasão por parte das mulheres. Nesses casos, os
homens apenas "ajudam" com as tarefas domésticas, contribuindo com o
que especialistas chamam de carga mental feminina.
A PNAD de 2022 revelou que,
no Brasil, entre as pessoas que estão empregadas, os homens dedicam em média 11
horas por semana aos afazeres domésticos e/ou cuidados de pessoas, enquanto as
mulheres dedicam em média 18 horas por semana. Essa disparidade é ainda mais
acentuada entre indivíduos sem ocupação. Nesse caso, homens dedicam, em média, apenas 13
horas por semana aos afazeres domésticos e/ou cuidados de pessoas, enquanto mulheres em média 24,5 horas semanais.
E ainda, mesmo quando os homens executam essas tarefas, muitas vezes são as mulheres que fazem o planejamento, antecipam possíveis problemas e levam em consideração todos os detalhes e interações necessárias. Elas também são as principais executoras dessas tarefas, realizando-as diariamente, sem descanso semanal, sem limites de jornada, sem hora extra e, na maioria das vezes, sem qualquer compensação financeira.
As consequências desse
desequilíbrio são múltiplas e profundas, afetando não apenas aspectos sociais e
econômicos, bem como emocionais e físicos.
Não é sem razão, portanto, que a conscientização sobre essa realidade tem ganhado cada vez mais destaque na formulação de leis e mesmo em decisões judiciais, em que esses fatores têm sido levados em consideração. É o que se observou, por exemplo, no Recurso 0013506-22.2023.8.16.0000 da 12ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná, que deferiu o aumento do valor de pensão alimentícia levando em conta a carga mental despendida pela mãe no cuidado com o filho. Isso demonstra uma mudança gradual na percepção e no entendimento da importância e do impacto do trabalho invisível realizado pelas mulheres em suas famílias e comunidades.
No entanto, o caminho para uma verdadeira transformação ainda é longo, mas deve ser trilhado. É fundamental que continuemos a advogar por uma distribuição mais equitativa das responsabilidades domésticas, assim como pelo reconhecimento e valorização do trabalho não remunerado realizado, notadamente, pelas mulheres.
Juntos, podemos contribuir para construir um futuro mais justo e igualitário para todos. É hora de agir.
*PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatítica (IBGE)
Para orientações ou assessoria jurídica, entre em contato pelo e-mail: costal.jaqueline.adv@gmail.com ou WhatsApp 11 96599-8881.
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Referências
[1] Oxfam Brasil. Tempo de cuidar: O trabalho de cuidado não remunerado e mal pago e a crise global da desigualdade. Jan. 2020. ISBN 978-1-78748-541-9. DOI: 10.21201/2020.5419. Disponível em: https://www.oxfam.org.br/forum-economico-de-davos/tempo-de-cuidar/. Acessado em: 17 abr. 2024.
[2] IBGE. Coordenação de
Pesquisas por Amostra de Domicílios. PNAD contínua: outras formas de trabalho, 2022.
SBN 978-85-240-4574-5 © IBGE, 2023. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=2102020.
Acessado em: 17 abr. 2024.
[3] FEDERICI, Silvia. Calibã e a
Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017, 406p.
[4] FEDERICI, Silvia. Mulheres e
caça às bruxas: da Idade Média aos dias atuais. CANDIANI, Heci Regina (trad.).
1° ed. São Paulo: Boitempo, 2019. 158p.
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